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Início de ciclo de festas populares é marcado por herança ancestral

Festa de Santa Bárbara

Divindades são reverenciadas com cores e comida relacionadas à religiosidade africana

Todo dia 4 de dezembro a região do centro da capital baiana se veste de vermelho e branco. Esta é indiscutivelmente uma das grandes festas da cidade, pois inicia o calendário de festas populares da Bahia e é reconhecida como patrimônio imaterial. Além da missa e procissão, a distribuição de caruru é um dos pontos altos da festa no Corpo de Bombeiros e no Mercado de Santa Bárbara, por conta da forte associação com divindades das religiões afro-brasileiras: Iansã (tradição ketu) e Bamburucema (tradição angola), senhora dos raios e dos ventos.

A tradição do caruru

Há 24 anos como integrante da Venerável Ordem Terceira do Rosário de Nossa Senhora às Portas do Carmo – Irmandade dos Homens Pretos, a professora Dilza Anjos dos Santos, 63 anos, atua na organização da festa com missa e procissão que é realizada pela Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos. Após três anos apenas frequentando a missa, ela atendeu ao chamado espiritual que transformou sua vida.

“Mudou tudo. Voltei a estudar, me desenvolvi, me encontrei, e é uma satisfação fazer parte disso. No dia da festa, a energia é inexplicável, forte”, disse a devota.

Dona Dilza realiza dois carurus ao ano: um no dia do seu nascimento, 27 de setembro, em homenagem às divindades São Cosme e São Damião, e em dezembro, sem data definida, para Santa Bárbara.

Tudo acontece seguindo a tradição com a ajuda de amigos e familiares, que passam a véspera ajudando na elaboração das iguarias que vão no prato. Quando tudo fica pronto e o cheiro característico toma conta do ambiente, a casa já vai ficando cheia sem precisar de convite. Em mais uma etapa do rito, dona Dilza faz os pratos que serão colocados aos pés das imagens das divindades para, em seguida, ir em busca das crianças que serão as primeiras a ser servidas. A Irmandade dos Homens Pretos também oferece caruru na primeira quarta-feira após a Festa de Santa Bárbara, na igreja localizada no Largo do Pelourinho.

“Não abro mão de continuar fazendo os dois carurus. Em comparação ao que eles já fizeram e ainda fazem na minha vida, ainda é pouco”, conta dona Dilza.

Salvador Capital Afro. Foto Jefferson Dias.

A escolha do caruru remete à relação de Iansã como esposa do orixá Xangô, que tem como comida votiva o amalá (feito com quiabo). No entanto, o processo de preparo de cada ingrediente determina para qual divindade do panteão africano ela será entregue.

“Para Iansã ou na associação religiosa com Santa Bárbara, ele é cortado em rodelas, fazendo menção ao mercado, moedas. O de Cosme e Damião e na associação com Ibeji, é cortado em cruz”, detalha o doutor em antropologia e professor da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e babalorixá do Ilê Axé Obá L’Okê, Vilson Caetano.

Além disso, o prato tornou-se motivo de festa e já estava presente nas feiras, barracas e manifestações da cidade.

“O caruru era, de fato, uma comida de festa. Em pesquisas para um texto que escrevi sobre a Festa de Santa Bárbara, encontrei o caruru servido no São João. Com o passar do tempo, o termo passou a designar festa e o conjunto de preparações”, conta Vilson Caetano, também autor do livro O Banquete Sagrado: notas sobre o “de comer” em terreiros de candomblé.

Apesar de ser o nome da iguaria feita com quiabo, quando se fala em comer um caruru, a associação não é só literal do molho de quiabo, é direta com um prato com diversos preparos, como vatapá, o próprio caruru, feijão-fradinho, arroz, xinxim de galinha, feijão preto, farofa de dendê, banana-da-terra frita, abará, acarajé, rapadura, pipoca.

“É um grande banquete para todos os orixás. Cada item representa uma divindade ou um conjunto delas. E, além de oferecer, comemos com a função de fortalecer a nossa ancestralidade, somos continuidade de África. E assim mantemos viva essa tradição culinária”, afirma o pesquisador.

O cortejo de Santa Bárbara acontece pelas ruas do Centro Histórico

O cortejo começa pelo Largo do Pelourinho, onde acontece a missa campal, antes de seguir pelo Corpo de Bombeiros, Terreiro de Jesus, Praça da Sé, Praça Municipal e Ladeira da Praça; na passagem pelo quartel, acontece o banho de mangueira da viatura Magirus; logo após, segue para o Mercado de Santa Bárbara; e o encerramento acontece no ponto de partida.

Trata-se de um dia festivo desde 1641, quando foi instituído o Morgado de Santa Bárbara, ao pé da Ladeira da Montanha (no bairro do Comércio). Já no século XX, com a modernização do cais do porto, o mercado foi demolido e os comerciantes foram transferidos para o mercado de Nossa Senhora da Guia, na Baixa dos Sapateiros, que passou a ser chamado de Mercado de Santa Bárbara por conta da devoção existente. No final da década de 80, com a reforma do imóvel, a Igreja Nossa Senhora do Rosário dos Pretos passa a sediar as celebrações e guardar a imagem da santa.

O doutor em estudos étnicos e africanos pela Ufba Vagner José Rocha Santos explica em Celebrando Santa Bárbara: festa e caruru no 4 de dezembro:

“Em Salvador, a santa ganhou mais um título: ‘senhora dos mercados’, tendo em vista que o morgado da Cidade Baixa funcionava como um mercado. Nessa região circulavam também bastantes africanos e crioulos que se aproximaram da devoção à padroeira do morgado. Não resta dúvida de que a devoção ganhou força em função da associação de Santa Bárbara com deuses iorubanos”

Festas de Verão

A Festa de Santa Bárbara também é considerada o marco do início das Festas de Verão na capital baiana. O termo consiste no ciclo de comemorações que antecedem o Carnaval e reúne os seguintes eventos: São Nicodemus – padroeiro dos trabalhadores do Porto (última segunda-feira de novembro), Santa Bárbara (4 de dezembro), Nossa Senhora da Conceição (8 de dezembro) e Santa Luzia (13 de dezembro); Bom Jesus dos Navegantes (1º de janeiro), Reis (6 de janeiro) e Bonfim (segundo domingo após a festa da Epifania – festa religiosa cristã que celebra o Dia de Reis); a Lavagem, o rito mais famoso, acontece na quinta-feira anterior a esse domingo solene; Ribeira (segunda-feira após o domingo do Bonfim), São Lázaro (último domingo de janeiro), Iemanjá (2 de fevereiro), Festa da Pituba (2 de fevereiro) e Festa de Itapuã (última quinta-feira antes do Carnaval).

Festa de Santa Bárbara – Doc

Tradição e Fé: Festa de Santa Bárbara – TV UFBA.DOC

Ventania no coração da Bahia – Teaser

Toponímia da Cidade com Cid Teixeira – Baixa dos Sapateiros

A dona do raio e do vento – Maria Bethânia. Neste link.

Iansã, mãe virgem – Ticoãs. Neste link.