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Salvador Capital Afro no Curuzu

Como viver o território Liberdade e Curuzu em nove experiências

Um roteiro cheio de opções com direito a lazer, gastronomia e cultura

Antes da identificação do espaço físico, o território Curuzu-Liberdade é sentido. É como passar por um portal e ter acesso ao mundo das letras de valorização da negritude das músicas do primeiro bloco afro do Brasil, o Ilê Aiyê, que, em 1974, iniciou pela via estética a construção do empoderamento de negros e negras da capital baiana. Em toda a extensão da Liberdade e do Curuzu, que desde 2017 deixou de ser uma rua da Liberdade para ganhar o status de bairro, elementos demarcam a identidade negra, que já é visível desde a postura de seus 23 mil moradores e frequentadores conscientes do que são e do representam.

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A indicação é começar pela Estrada da Liberdade – nome que remete a 1820, quando combatentes vitoriosos da Independência da Bahia marcharam pela antiga Estrada das Boiadas, que por isso se tornou Estrada da Liberdade – na altura do Plano Inclinado Liberdade-Calçada (Pilc), que liga os dois bairros. Além do busto do líder do movimento contra o apartheid e ex-presidente da África do Sul Nelson Mandela (1918-2013), a via oferece, a partir do plano inclinado, uma vista da Cidade Baixa de beleza indescritível. Se o dia for ensolarado, o dourado dos campanários da Basílica do Senhor do Bonfim vai de brinde.

Liberdade. Vista do Plano Inclinado Liberdade-Calçada (PILC). Salvador Bahia. Foto Jefferson Dias.

A via também faz parte do trajeto do primeiro dia de desfile do bloco afro Ilê Aiyê no Carnaval de Salvador, que começa em frente ao Ilê Axé Jitolu, no Curuzu, e segue até o Pilc. E falando em Curuzu, é lá onde ocorre a concentração de eventos e atrações turísticas que atraem soteropolitanos e turistas. O portal físico instalado na entrada da antiga rua – com seu 1,1 km entre a Estrada da Liberdade e a Avenida General San Martin – reforça ainda mais a sensação de respirar um ar diferente. De pertencimento para negros e de encantamento para não negros.

Gastronomia, cultura e estética afro

O primeiro local de parada quase obrigatória é o Bar do Pinto. A cerca de 100 metros da entrada do bairro, a primeira escadaria à esquerda dá acesso à Rua Nelson Maleiro, onde fica o estabelecimento. A partir da segunda metade da descida, o que guia o visitante é o cheiro da anchova frita que é servida lá no espaço, que abre às 17h. Quase sempre tem fila e, em dia de movimento intenso, acaba antes das 19h. A indicação foi do ator e afrochef Jorge Whashington, que não abre mão de passar lá toda vez que vai ao bairro.

De volta ao nosso roteiro pela via principal, a próxima atração é o busto de Apolônio Souza de Jesus Filho (1952-1992), o Popó, um dos fundadores do Bloco Afro Ilê Aiyê e militante pela afirmação de entidades negras, que está localizado no cruzamento entre a Rua do Curuzu e a Rua Progresso. A obra é da artista plástica baiana Márcia Magno.

Curuzu. Busto de Apolônio Souza de Jesus Filho (1952-1992), o Popó. Salvador Bahia. Foto Jefferson Dias.

Esse ponto do passeio é próximo de mais um local de reverência, afinal, lá existe uma rainha. É com um sorriso contagiante que Gerusa Menezes, Deusa do Ébano 1998, recebe os ‘súditos’ que vão em busca dos serviços que oferece no salão que comanda, com seu nome, que também é ponto turístico. “O Curuzu é o meu lar, onde eu me fortaleço. A minha caminhada começa e recomeça aqui para o mundo”, diz a majestade. É comum ter fila na semana da entrega de fantasia do Ilê, formada por integrantes do bloco que vão em busca de incrementar o figurino para desfilar no ‘Mais belo dos belos’.

Também referência de beleza é o espaço VC Penteado Afro, das gêmeas Catarina e Valéria Lima. A estética está no DNA das profissionais, filhas da estilista e fundadora do Ilê Aiyê Dete Lima, que responde pelo figurino da Deusa do Ébano durante o desfile do bloco, que é criado hoje durante a montagem no corpo da rainha, com amarrações. São décadas com o trabalho de valorização, beleza e fomento da autoestima da mulher negra. Então, o caminho foi natural para as irmãs, que, com a arte de entrelaçar mechas de fibra e cabelo, adornam o ori (cabeça) de homens, mulheres e crianças.

“O Curuzu é minha história, minha vida. E sinônimo de representatividade. Eu me inspirei na minha avó e na minha mãe. Esse lugar trouxe tudo pra gente: o trabalho de minha mãe, nossa religião, a ancestralidade”, conta Valéria.

Curuzu. Catarina e Valéria Lima. VC Penteado Afro. Salvador Bahia. Foto Jefferson Dias.

Um território ancestral

E por falar no aspecto religioso, o Mapeamento dos Terreiros de Candomblé de Salvador – realizado pelas secretarias municipais da Reparação e da Habitação, em parceria com o Centro de Estudos Afro-Orientais da Universidade Federal da Bahia (Ufba) – identificou 14 templos, dos quais dois chamam mais atenção.

O Ilê Axé Jitolu, da nação jeje-nagô, hoje comandado por doné Hildelice Benta dos Santos, tinha como líder espiritual Mãe Hilda dos Santos (1923-2009), que fundou o templo em 1952 e orientou desde a fundação do bloco até as ações sociais. É da porta do terreiro que acontece a tradicional Saída do Ilê Aiyê no sábado de Carnaval, após cerimônia religiosa.

Já o Terreiro Hunkpame Savalu Vodun Zo Kwe, localizado ao lado da sede do bloco, foi o primeiro tombamento como Patrimônio Cultural do Município de Salvador, em 2016. É também o único da nação jeje savalu. O terreiro tem a maior área verde do bairro, ocupando 2.400 m². A liderança espiritual é de doté Amilton Costa.

Curuzu. Terreiro Hunkpame Savalu Vodun Zo Kwe. Salvador Bahia. Foto Jefferson Dias

Outro espaço sagrado que o Curuzu abriga é a Senzala do Barro Preto, sede do bloco Ilê Aiyê, que tem como presidente Antônio Carlos dos Santos Vovô, que é filho biológico de Mãe Hilda. A agremiação, além de projetos sociais, é o local onde acontecem os ensaios ao longo do ano e eventos como a Noite da Beleza Negra, para a escolha da Deusa do Ébano. É lá o ponto de partida da Marcha da Liberdade no dia 20 de Novembro, Dia da Consciência Negra. É um dos redutos de mais representatividade da população negra da capital baiana, pois criou e fomentou um jeito de dançar, de vestir e de cantar até hoje utilizados como discursos de autoafirmação.

Curuzu. Senzala do Barro Preto, sede do bloco Ilê Aiyê. Salvador Bahia. Foto Jefferson Dias.

Não deixe de conhecer….

Nesse viés estético, o uso de tecidos africanos é emblemático e foi a oportunidade para o nigeriano Ange Taofik Koudiuo vir e ficar. Ao lado da entrada do Vodun Zo, ele abriu a loja Taofik Mode Africano. As peças de tecido expostas na parede chamam a atenção de quem está passando pela calçada. E a loja ainda oferece serviço de costura.

Curuzu. Loja Taofik Mode Africano. Salvador Bahia. Foto Jefferson Dias.

“Cheguei a morar em São Paulo, mas é diferente. Aqui é bem melhor, tem mais coisas parecidas com a nossa cultura, tem mais gente da minha cor e com a minha crença religiosa”, conta Taofik.

Nesse vai e volta de andanças pelo bairro, a boa ‘paletada’, a fome aperta novamente e o lugar, agora, alimenta o corpo e a alma. Subindo as escadas em direção a uma varanda bem ao lado da Senzala, Lucidalva Ferreira dos Santos, tia Lu, está lá para receber quem chega com abraço e pratos com tempero especial no seu restaurante.

“Eu amo meu lugar. Não saio daqui para nada. Tenho orgulho de ser daqui, de um lugar que contribuiu tanto para todo negro se sentir lindo e livre para ser quem quiser”, revela.

Curuzu. Lucidalva Ferreira dos Santos, tia Lu. Salvador Bahia. Foto Jefferson Dias.

Dentre os pratos que mais saem, a moela cozida, o peixe frito e a feijoada estão no topo do ranking da preferência de moradores e visitantes.

O ator e afrochef Jorge Whashington, nascido e criado no bairro da Liberdade, faz um resumo do que é viver e estar no Curuzu:

Eu arrumo meu cabelo com Gerusa há 25 anos, me divirto nos ensaios do Ilê, é o meu lugar para comer uma comida boa, para fazer política quando vou para a marcha no Dia da Consciência Negra. Lá tem uma simbologia negra muito aguçada. É lugar de resistência, com vários terreiros que cuidam da nossa ancestralidade. É onde posso exercer minha cidadania enquanto homem negro. A atmosfera é diferente de qualquer outro bairro.”