História, receita e tradição: conheça o valor histórico do famoso bolinho na cultura baiana
Um dos grandes ícones da Bahia, carregado de ancestralidade e praticamente um ponto turístico em si. O acarajé é mais que um alimento e sustento para várias famílias; tem um importante caráter simbólico. Sair para comer um acarajé também representa um momento bom depois de um dia pesado de trabalho. É ponto de encontro, reunião entre amigos e perfeito na praia. Acarajé é memória afetiva.
São muitos os motivos para baianos e visitantes serem apaixonados por ele. Quem nos conta é Elaine Michele Assis Cruz, uma das pessoas à frente do tabuleiro de Dinha, no Rio Vermelho, um dos mais emblemáticos acarajés de Salvador.
“Acredito que essa paixão pelo acarajé se dá pela tradição em que o mesmo é envolvido. É um alimento sagrado, de matriz africana e com muito axé, tradição e sabor, além de seus acompanhamentos, como vatapá, caruru, salada, pimenta e camarão, que o complementam, tornando o bolinho o carro chefe da culinária afro-baiana e desejado pelos turistas.”
E você sabe do que é feito o acarajé? Conhece a tradição? A gente te conta! O Visit Salvador da Bahia reuniu 14 curiosidades sobre o acarajé. Venha conosco e diga se você sabia de todos.
1. A base é de feijão!
Perguntamos para a Elaine Michele Assis Cruz se os turistas sabem do que é feito o acarajé e se perguntam a receita:
“Os turistas geralmente não sabem e perguntam sim o modo de preparo e receita. Alguns até inventam alguns ingredientes (rs). Mas ensino o que rege a tradição e alguns se surpreendem com o fato de ser um bolo de feijão fradinho temperado com cebola e sal a gosto”, explica.
Os Ingredientes
A massa leva feijão fradinho, cebola ralada, azeite de dendê e sal a gosto. Deixe o feijão de molho por cinco a seis horas. Depois é preciso tirar a casca do feijão e moer. Cada baiana faz de um jeito, algumas usam o pilão de acarajé, outras fazem no moinho manual e até moedores elétricos de cereais. Acrescente a cebola e o sal. Há quem diga que “o mistério” acontece nessa hora, ao bater a massa. Retire a porção da massa com a colher e coloque para fritar no azeite de dendê fervente.
2. Falafel árabe
O acarajé dos iorubás da África Ocidental (Togo, Benin, Nigéria, Camarões) é semelhante ao falafel árabe que é feito de uma massa de grão-de-bico triturado e frito.
O acarajé da Bahia é originário do Golfo do Benin, lá chamado acará, tendo sido trazido para o Brasil com a vinda de pessoas escravizadas dessa região.
Tem até uma série documental que conta a ligação dos dois alimentos. “A História da Alimentação no Brasil” tem 13 episódios e é baseada em livro homônimo do antropólogo potiguar Luís da Câmara Cascudo (1898-1986). O oitavo episódio, intitulado “Dieta Africana”, fala das raízes africanas nos costumes alimentares de nosso país.
Assista agora neste link.
3. O que significa “acarajé”?
A palavra acarajé vem do iorubá àkàrà, “bola de fogo”, + je, “comer”
“Acarajé significa ’comer bola de fogo‘. Essa iguaria de matriz africana é o símbolo da cultura do nosso estado. Cartão postal da nossa cidade juntamente com a baiana e seu tabuleiro”, afirma Elaine.
Segundo ela, todo turista que vem à cidade quer experimentar e se deliciar. Já os baianos têm o acarajé como prato obrigatório.
“Pelo menos uma vez na semana tem que comer e ativar o dendê no sangue”, conta sorrindo.
4. Quente ou frio
Até o molho de pimenta é especial para o acarajé, levando gengibre na receita. No livro “Cozinhando Histórias – Receitas, Histórias e Mitos de Pratos Afro-brasileiros”*, na lista de ingredientes tem: azeite de dendê, pimenta malagueta madura e moída, gengibre ralado, sal e cebola ralada.
Fique ligado! Se alguém te perguntar se quer um acarajé quente ou frio não ache que está relacionado à temperatura. A pessoa quer saber se você quer com muita ou pouca pimenta: muita (quente) ou pouca (frio). Quase ninguém faz essa brincadeira, mas, se fizer, agora você já sabe!
5. Alimento sagrado
O acarajé é considerado uma comida sagrada dentro do candomblé e sua receita não pode ser modificada. Rita Santos, Presidente da Associação da Baianas de Acarajé e que está à frente do Memorial das Baianas de Acarajé, explica:
“Tudo começou no simbólico. As mulheres escravizadas vendiam acarajé para comprar alforrias. Na segunda etapa, foram as baianas indo para a rua para mercar o acarajé para fazer suas obrigações nos terreiros, normalmente as filhas de Oiá (não poderia ser qualquer pessoa).”
Ela também conta que, com o passar do tempo, se percebeu que a pessoa que vendia aquele bolinho poderia sustentar a família. Foi quando o acarajé foi para a rua para ser comercializado.
“Ele é comercial, mas, na minha cabeça, ele ainda é simbólico por continuar sendo do terreiro, continua sendo sagrado. O acarajé é uma oferenda para Iansã e o abará é uma oferenda de Xangô”, conclui.
6. O Mito do Acarajé
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No livro “Cozinhando Histórias – Receitas, Histórias e Mitos de Pratos Afro-brasileiros”, a pesquisadora e fotógrafa Josmara B. Fregoneze, a especialista em culinária afro-brasileira, Marlene Jesus da Costa e Dona Cici*, griô que dedica seu tempo a passar a sabedoria ancestral afro-brasileira adiante, contam que muitos dos pratos afro-baianos servidos hoje – principalmente em ocasiões festivas – e restaurantes, tiveram origem em fundamentos religiosos ligados ao candomblé.
Segundo a lenda, todos os dias Oxum preparava a comida de Xangô e Iansã levava na cabeça a panela que continha o segredo do rei até seu palácio. Certo dia, Oxum chamou Iansã e pediu que levasse a panela mas que não olhasse o que tinha dentro. No meio do caminho para o palácio do rei Xangô, a curiosidade foi mais forte e Iansã abriu a tampa e, muito assustada, viu as labaredas de fogo subirem à grande altura. Rapidamente, ela fechou a panela e continuou seu caminho. Chegando ao palácio, ajoelhou-se diante de Xangô e arriou a panela, desviando o olhar do rei. Xangô perguntou três vezes se ela viu o que o rei come. Iansã disse que sim. Então Xangô disse: “As mulheres que conhecem meu segredo passam a ser minhas esposas”.
7. E tem hora certa para comer acarajé?
No início, todas as pessoas que produziam e comercializavam o acarajé eram iniciadas no candomblé, numa prática restrita a mulheres, em geral Filhas de Santo dedicadas ao culto de Xangô e Oiá (Iansã). Para cumprir suas “obrigações” com os orixás, durante o período colonial, as negras libertas ou negras de ganho preparavam os quitutes e saíam às ruas de noite para vendê-los, dando origem a esse costume. Até hoje, a grande maioria das baianas vai para a rua só a partir das 17h.
8. Saberes passados de mãe para filha
O ponto da baiana é licenciado na Prefeitura, então não pode ser vendido para uma outra pessoa, sendo passado de mãe para filha. Mas, mesmo antes de toda a legalização do ofício, já era tradição o tabuleiro passar para algum familiar. Uma das baianas mais conhecidas, Dinha do Acarajé é um exemplo.
Elaine Michele Assis Cruz conta que o tabuleiro “Acarajé da Dinha” foi fundado em janeiro de 1944 no Largo de Santana, no Rio vermelho, por Ubaldina de Assis, sua bisavó. Mais tarde, esta começou a ficar somente na cozinha e passou o trono para sua filha Ruth de Assis (avó de Elaine). Com o falecimento de Ruth, o tabuleiro passou para Lindinalva e Edna de Assis, e depois para Cláudia Assis, irmã mais velha de Elaine. Atualmente é administrado por ela mesma e seu irmão, Edvaldo Cruz.
Mas, como toda regra tem suas exceções, muitas baianas não tiveram filha mulher, mas sim homem, e os filhos seguiram os passos da mãe, já que essa é uma profissão familiar. Hoje em dia, também não é uma regra que sejam pessoas do candomblé. A baiana pode até ser de outra religião, desde que ela respeite a tradição e siga o decreto do IPHAN, segundo o qual a baiana deve estar na rua de bata, saia e torço e o tabuleiro tem que estar organizado.
9. O que é que a baiana tem?
De autoria de Dorival Caymmi e eternizada por Carmen Miranda, “O que é que a baiana tem” foi uma das músicas da trilha sonora para o filme “Banana da Terra”, de 1939. O musical brasileiro foi a última aparição da cantora portuguesa de alma brasileira no cinema nacional. Se você parar para analisar, Carmem cantando essa música, é a única cena que ficou do filme: ou você conhece várias pessoas que tenham visto este filme completo?
Carmen Miranda se tornou um ícone de estilo nos anos 40, sendo uma das primeiras referências da moda nacional. O célebre look cinematográfico foi todo inspirado na indumentária de celebrações dos terreiros de candomblé da Bahia e trajes tradicionais das baianas de acarajé, do qual item por item estava na letra de Caymmi.
O turbante, a saia comprida rodada, brincos e balangandãs se tornaram sua marca registrada no Brasil e no mundo depois desta aparição. Se isso tivesse acontecido nos dias de hoje, com certeza o assunto teria sido debatido com mais profundidade.
“…O que é que a baiana tem?
Tem torso de seda tem (tem)
Tem brinco de ouro tem (tem)
Corrente de ouro tem (tem)
Tem pano da Costa tem (tem)
Tem bata rendada tem (tem)
Pulseira de ouro tem (tem)
E tem saia engomada tem (tem)
Tem sandália enfeitada tem (tem)
E tem graça como ninguém…”
10. Indumentária e religiosidade em torno da baiana
A indumentária das baianas, característica dos ritos do candomblé, constitui também um forte elemento de identificação desse ofício, sendo composta por turbantes, panos e colares de conta que simbolizam a iniciação religiosa das baianas.
A roupa da baiana também reúne elementos visuais do barroco da Europa por meio dos seus muitos bordados e rendas. É uma indumentária multicultural, que envolve diversos elementos como o pano engomado, o tradicional richelieu, o perfume de alfazema, a figa e os brincos de búzio. Há as baianas que sempre colocam estampas de chita, que eram as roupas que as primeiras baianas de acarajé usavam.
Essas chamadas “roupas de gala” são mais utilizadas em dias de festas populares, cortejos e em receptivo. Ganham ainda Pano da Costa*, e hoje adicionaram até panos com brilho, além das tradicionais figas, colares maiores, pulseiras e anéis.
11. Nem sempre teve caruru e salada no acarajé
Rita Santos, Presidente da ABAM, explica que, cronologicamente, no começo, era vendido apenas o “bolinho” com a pimenta. Depois, foram adicionados vatapá e camarão. Já o caruru e a salada tornaram-se um costume há cerca de 30 anos. Por isso, algumas baianas não vendem estes dois últimos complementos, por não acharem que faça sentido.
Cada pessoa tem uma forma preferida de comer acarajé. Na opinião de Elaine Michele, “o que faz o acarajé ser perfeito é um bom feijão fradinho, massa bem batida e crocância ao morder sua casquinha. Acompanhado de pouca pimenta e camarão, é claro”.
12. Os outros quitutes do tabuleiro
No tabuleiro da baiana tem que ter: acarajé, abará, vatapá, caruru, camarão, salada e pimenta, além da cocada, bolinho de estudante e a passarinha. Só que, mesmo assim, tudo isso fica a critério de cada baiana.
“Eu gostaria de resgatar outras coisas que tinham nos tabuleiros como pé de moleque, o peixe, o acaçá, tinha farinha da vovó, tinha muitas outras coisas no tabuleiro da baiana antigamente”, desabafa Rita Santos.
13. Dia Nacional da Baiana de Acarajé
O Dia Nacional da Baiana de Acarajé é comemorado anualmente em 25 de novembro. Uma homenagem à importância histórica e cultural da figura da baiana do acarajé, nome dado às mulheres que se dedicam à produção e venda dessa iguaria típica da Bahia.
A data simboliza o reconhecimento da importância do legado dos ancestrais africanos no processo histórico de formação de nossa sociedade e do valor patrimonial de complexo universal cultural. O Ofício das Baianas do Acarajé é considerado Patrimônio Histórico e Imaterial do Brasil.
14. Documentário
O documentário ”Àkàrà, no fogo da intolerância” propõe o resgate de acontecimentos históricos através de relatos de baianas de acarajé. O quitute corre o risco de perder o título de Patrimônio Histórico e Imaterial pela descaracterização da sua receita original e comercialização por pessoas de outros credos.
”Àkàrà, no fogo da intolerância” é um documentário que se une à luta contra a intolerância que atinge, principalmente, as religiões de matriz africana. O filme faz uma análise histórica desde a perspectiva de quem sofre este tipo de violência até a relação desta com o racismo estruturante instaurado na sociedade brasileira.
Clique neste link e assista agora.
Por Fernanda Slama
Coordenadora de conteúdo
Nota:
Livro*: “Cozinhando Histórias – Receitas, Histórias e Mitos de Pratos Afro-brasileiros” com fotos de Pierre Verger. Foi escrito por Josmara B. Fregoneze, Marlene Jesus da Costa e Nancy Sousa, mais conhecida como Dona Cici.
Dona Cici* – griô, Dona Cici dedica seu tempo a passar a sabedoria ancestral afro-brasileira adiante. Ela sabe muita coisa sobre a cultura dos orixás e sobre nossa história.
Pano da Costa* – é parte integrante da indumentária de baiana característica das ruas de Salvador e do Rio de Janeiro no século XIX. Geralmente retangular, o pano da costa é tradicionalmente branco ou bicolor podendo ser bordado ou com aplicações em rendas. O nome pode ter derivado de sua origem na África Ocidental ou do fato de ele ser usado preferencialmente jogado sobre os ombros e costas.